top of page

"Criar dois, trĂȘs, muitos Vietnames!" - A Primeira ConferĂȘncia Tricontinental de 1966

  • Foto do escritor: LĂȘgerĂźn 2
    LĂȘgerĂźn 2
  • 22 de mai. de 2024
  • 6 min de leitura
ree

A primeira conferĂȘncia de solidariedade dos povos da Ásia, África e AmĂ©rica Latina, a ConferĂȘncia Tricontinental, foi realizada de 3 a 15 de janeiro de 1966 na cidade de Havana, Cuba.  Esta enorme reuniĂŁo reuniu mais de 500 representantes de oitenta e dois paĂ­ses do Sul global, representando partidos polĂ­ticos, movimentos sociais e organizaçÔes anti-imperiais, bem como sindicatos e grupos de estudantes e de mulheres.


A ConferĂȘncia contou com a presença de quadros revolucionĂĄrios, falando em nome dos povos dos trĂȘs continentes explorados, todos unidos na sua luta pela libertação.  Nunca antes uma tal reuniĂŁo de representantes de África, Ásia e AmĂ©rica Latina tinha sido convocada num sĂł lugar.  Apesar das diferentes realidades, culturas, crenças, mĂ©todos de construção e filosofias de cada sociedade, foi identificado um denominador comum: a luta contra o colonialismo, e especificamente o imperialismo americano, que era considerado a ameaça mais perigosa a todos os processos revolucionĂĄrios da Ă©poca.


A solidariedade e o internacionalismo assumiram uma nova face, impulsionados pelo Sul global.


Naquela conjuntura histórica, o mundo estava no meio da Guerra Fria, um cenårio que via o globo polarizado entre os blocos comunista e capitalista, com a União Soviética e os Estados Unidos liderando cada um, respectivamente.  Entretanto, em África, revoltas fervorosas do povo, incorporadas em movimentos de libertação nacional contra o colonialismo e o imperialismo ocidental, abalavam os velhos sistemas.


Esta situação fez com que importantes delegaçÔes do Congo, do povo do ZimbabuĂ© da RodĂ©sia do Sul e dos Movimentos de Libertação de Angola e Moçambique participassem na ConferĂȘncia com especial urgĂȘncia.  Destaca-se tambĂ©m a presença do lendĂĄrio AmĂ­lcar Cabral, em representação do povo guineense que luta contra o colonialismo portuguĂȘs.  Apenas um ano apĂłs a ConferĂȘncia, Cabral foi assassinado.  A delegação da UniĂŁo SoviĂ©tica foi convidada como observadora para o encontro dos povos do Sul global.


A ConferĂȘncia Tricontinental tambĂ©m contou com a presença de lĂ­deres proeminentes do movimento revolucionĂĄrio latino-americano, incluindo o chileno Salvador Allende, o guatemalteco Luis Augusto Turcios Lima, o guianĂȘs Cheddy Jagan, o venezuelano Pedro Medina Silva e o uruguaio Rodney Arismendi.  AlĂ©m disso, participaram do evento representantes de diferentes facçÔes da Organização para a Libertação da Palestina.  VĂĄrios chefes de Estado que nĂŁo puderam comparecer pessoalmente enviaram mensagens, como o vietnamita Ho Chi Minh, o lĂ­der da RPDC, Kim Il Sung, o egĂ­pcio Gamal Abdel Nasser, o argelino Houari Boumedienne e o tanzaniano Julius Nyerere.


Durante esta ConferĂȘncia foram debatidos mĂșltiplos temas econĂłmicos, polĂ­ticos e culturais, cujo impacto ressoou para alĂ©m do evento.  No livro “TrĂȘs Continentes, Ásia, África, AmĂ©rica Latina”, editado em maio de 1966 pela Prensa Latina, encontram-se os temas discutidos e analisados pelas delegaçÔes durante o evento, culminando na anĂĄlise da situação polĂ­tica de todos os paĂ­ses participantes.


Esta conferĂȘncia surgiu de duas dinĂąmicas precedentes fundamentais.  Uma delas foi a organização de estados do movimento anticolonial, que fundou o Movimento dos NĂŁo-Alinhados (NAM) em 1961, que incluĂ­a nĂŁo apenas regimes radicais, mas tambĂ©m aqueles com uma atitude mais conciliatĂłria em relação ao imperialismo.  Da mesma forma, houve movimentos com guerras de libertação nacional nĂŁo concluĂ­das, que tinham um carĂĄcter mais radical, e estes reuniram-se na Organização de Solidariedade Afro-AsiĂĄtica (OSPAA) de 1957.


A alma notĂĄvel e a força motriz por trĂĄs da ConferĂȘncia Tricontinental foi o marroquino Mehdi Ben Barka, que infelizmente nĂŁo viveu para ver os seus esforços.


Dois meses antes, em 29 de outubro de 1965, foi sequestrado em Paris, torturado e brutalmente assassinado.  Acredita-se que o seu assassinato tenha sido orquestrado pela inteligĂȘncia militar americana, marroquina e israelita, embora trĂȘs indivĂ­duos tenham sido condenados pelos tribunais franceses como perpetradores.  Apesar disso, o caso continua sem solução e os autores intelectuais deste crime polĂ­tico nunca foram levados Ă  justiça.


A ConferĂȘncia Tricontinental demonstrou a diversidade do movimento revolucionĂĄrio global e o seu interesse comum.  Assistiu a um debate profundo dentro do movimento revolucionĂĄrio, incluindo ecos da disputa entre as visĂ”es comunistas soviĂ©tica e chinesa.  Surgiram tambĂ©m debates sobre os caminhos para o socialismo, particularmente no que diz respeito Ă  luta armada versus outros mĂ©todos de transição pacĂ­ficos;  bem como as alianças e solidariedades necessĂĄrias a serem forjadas internacionalmente.  Nessas discussĂ”es foram ouvidas as posiçÔes cubanas e de Allende do Chile.  Fidel Castro enfatizou que â€œĂ© dever de todo revolucionĂĄrio fazer a revolução” e criticou a falta de apoio eficaz e consistente do bloco socialista ao Vietname, que estava sob ataque dos EUA desde 1955. Ele atribuiu esta fraqueza ao intra-.  desacordo comunista, que ele caracterizou como "discĂłrdia bizantina".


O slogan de Che Guevara, “criar dois, trĂȘs... muitos Vietnames”, tambĂ©m surgiu como uma orientação para garantir a liberdade e a independĂȘncia dos povos.


Sem ir contra a via cubana, Allende expressou o seguinte: “SerĂĄ o prĂłprio povo do Chile, e as condiçÔes do nosso paĂ­s, que determinarĂŁo se usaremos este ou aquele mĂ©todo para derrotar o inimigo imperialista e os seus aliados”.


Mais tarde, Allende salientou: “Estamos ao lado dos povos da Ásia e de África e do mundo ĂĄrabe, que lutam com armas no Congo, nas colĂłnias portuguesas, no IĂ©men, no Laos, especialmente no Vietname, contra o inimigo comum.  Acreditamos que as suas lutas sĂŁo ajudas valiosas para os povos latino-americanos que, Ă  sua maneira e em cada frente, se opĂ”em ao imperialismo. Estamos ao lado dos combatentes da Guatemala, da ColĂŽmbia, da Venezuela, do Peru e, especialmente, do corajoso povo dominicano, cujo herĂłico  batalha com a qual nos solidarizamos para conquistar sua liberdade e expulsar os invasores ianques. TambĂ©m estamos ao lado daqueles que lutam para derrotar o imperialismo.”


É verdade que a participação dos jovens e das mulheres foi fundamental neste acontecimento político.


A maioria dos revolucionårios que compareceram eram jovens militantes e quadros, e os registos audiovisuais mostram a presença significativa de mulheres.  No entanto, encontrar documentação que detalhe especificamente as actividades das mulheres e jovens presentes, de uma forma profunda e exaustiva, é um desafio.


 Desta ConferĂȘncia surgiu a Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e AmĂ©rica Latina (OSPAAAL), cujo Secretariado Executivo, com representantes dos trĂȘs continentes, estĂĄ sediado em Havana, Cuba, atĂ© hoje.  Da OSPAAAL surgiu a “Revista Tricontinental”, espaço de informação, denĂșncia e solidariedade militante.  Nos seus nĂșmeros, alĂ©m de artigos escritos, foram publicados diversos cartazes que contribuĂ­ram significativamente para fortalecer a luta, conscientizar o mundo e denunciar o que estava acontecendo contra as lutas populares.

A posição internacionalista de Cuba era clara e poderosa.  Fidel Castro disse: “Sem ostentação, sem qualquer modĂ©stia, Ă© assim que os revolucionĂĄrios cubanos entendem o nosso dever internacionalista, e Ă© assim que o nosso povo entende os seus deveres, porque entende que o inimigo Ă© um e o mesmo, aquele que ataca  nĂłs em nossas costas e em nossas terras Ă© o mesmo que ataca os outros. E Ă© por isso que dizemos e proclamamos que o movimento revolucionĂĄrio pode contar com os combatentes cubanos em qualquer canto da Terra. Nosso povo se sentiu como seu, cada um e  cada um dos problemas dos outros povos. O nosso povo acolheu-os de braços abertos e despediu-se deles de braços fechados, como sĂ­mbolo de um vĂ­nculo que nunca se romperĂĄ e como sĂ­mbolo da sua solidariedade fraterna para com outros povos que lutam  , por quem tambĂ©m estĂŁo dispostos a derramar seu sangue. PĂĄtria ou morte! NĂłs venceremos!


 Sem dĂșvida, este evento serve como um importante ponto de referĂȘncia na histĂłria dos movimentos revolucionĂĄrios.  Contudo, como internacionalistas do movimento ApoĂ­sta, devemos adoptar uma perspectiva crĂ­tica para construir e fortalecer movimentos revolucionĂĄrios em todo o mundo.  DeverĂ­amos nos perguntar: por que esta proposta internacionalista nĂŁo avançou e se fortaleceu significativamente?  SerĂĄ talvez porque foi criado dentro da dinĂąmica e da lĂłgica dos Estados-nação, sem questionar a civilização capitalista?  Como podemos abrir debates sobre as nuances e as novas faces do imperialismo e da luta anti-imperialista no nosso tempo?  Como podemos promover mais discussĂ”es dentro da esquerda internacional para questionar a realidade dos Estados-nação e das forças que compĂ”em esta modernidade capitalista?  Como podemos propor e construir uma proposta internacionalista para o nosso tempo atual, ao mesmo tempo que aprendemos com estes precedentes?


Hino Tricontinental


 América, África e Ásia,

 trĂȘs continentes unidos por um ideal.

 Os povos nunca foram derrotados,

 unidos em suas armas de liberdade.

 América, sua luta fica mais forte

 cada dia, mais valioso ao lado de Cuba e de Fidel!

 Marchando para frente incessantemente,

 viva o Tricontinental!


 Viva a África, viva Lumumba!

 Viva o farol da revolução!

 Viva todos os que se levantam para isso!

 Viva o Tricontinental!



 América, África e Ásia,

 trĂȘs continentes unidos por um ideal.

 Acima da aliança invencível,

 a força, a esperança da revolução.

 Abaixo o imperialismo!

 Com as armas levantadas, lute até a vitória!

 Abaixo o opressor e suas correntes!

 Viva o Tricontinental!



 Viva na Ásia e no Pacífico nos povos

 crescendo na guerra pela sua libertação.

 Pelo Vietname, pela vitória e pelo socialismo,

 viva o Tricontinental!



______

Um ano apĂłs a ConferĂȘncia, em abril de 1967, Che Guevara publicou sua “Mensagem aos Povos do Mundo” na Revista Tricontinental, publicada pela OSPAAAL.  Meses depois, ele foi assassinado na BolĂ­via.-1


 
 
 
bottom of page